Pular para o conteúdo principal

O Paradoxo da Tolerância e a Fragilidade do Mundo Comum

Há uma ideia recorrente em nosso tempo que soa, à primeira vista, ética e incontestável: a de que toda diferença deve ser tolerada. Contudo, quando levada às últimas consequências, essa noção revela um paradoxo estrutural que atravessa a história humana e expõe a fragilidade de qualquer tentativa de convivência absoluta. A frase — “não podemos tolerar o intolerante” — já contém em si a contradição que pretende negar. Pois, no momento em que se define quem é o intolerante, estabelece-se um limite, uma exclusão, um julgamento. O tolerante, inevitavelmente, torna-se aquele que exclui.

Esse paradoxo não é um erro lógico nem uma falha moral. Ele é ontológico. Toda forma de vida coletiva exige fronteiras simbólicas. Não existe tolerância infinita, assim como não existe sociedade sem algum grau de negação, correção ou contenção. A ilusão moderna é acreditar que podemos abolir os critérios sem abolir, junto com eles, o próprio mundo comum.

O louco só existe porque existe o normal. O desvio só é reconhecível porque há uma norma. O erro só se manifesta porque há uma noção, ainda que implícita, de acerto. Essas categorias não são naturais no sentido físico, mas são inevitáveis no sentido relacional. Elas não descrevem essências eternas; descrevem matrizes de orientação. Apagar essas matrizes não elimina o julgamento — apenas o torna invisível, difuso e, frequentemente, mais violento.

A existência humana nunca foi monocromática. Ela sempre se organizou como um espectro, uma matiz cromática em constante tensão. Entre o certo e o errado, o normal e o patológico, o aceitável e o proibido, há gradações, zonas cinzentas, ambiguidades. No entanto, um espectro não é ausência de direção. Mesmo na transição entre cores, existem polos. Quando tudo se transforma em matiz sem referência, o resultado não é liberdade, mas desorientação.

A crítica progressista contemporânea a toda forma de conservação, moralidade ou limite parte de uma intenção compreensível: evitar abusos, violências e opressões históricas. Porém, ao atacar indiscriminadamente os mecanismos que estruturam o comum, ela acaba corroendo os próprios fundamentos da coesão social. Sem normas mínimas compartilhadas, não há confiança. Sem continuidade simbólica, não há transmissão. Sem critérios de correção, não há crítica — apenas choque de narrativas.

O que emerge desse processo não é uma sociedade sem moral, mas uma sociedade de micro-moralismos. Em vez de valores comuns, proliferam tribunais informais. Em vez de ética debatida, cancelamentos súbitos. A moral não desaparece; ela se fragmenta, se torna reativa, personalizada e hostil. A exclusão permanece, mas agora sem nome, sem limite e sem responsabilidade explícita.

A história mostra que toda sociedade, sem exceção, produz seus excluídos. A diferença fundamental não está em eliminar a exclusão — tarefa impossível —, mas em decidir como ela se dá. Se de forma consciente, debatível e limitada, ou de modo difuso, moralista e incontrolável. Quando os limites são negados publicamente, eles retornam pelas bordas, mais agressivos e menos racionais.

Confundir moral com dogma é outro erro recorrente. Defender a necessidade de uma moral compartilhada não implica rigidez absoluta nem retorno a formas arcaicas de controle. Implica reconhecer que a liberdade humana só existe dentro de estruturas que a contenham. Sem limites, não há escolha; há impulso. Sem contenção, não há convivência; há colisão.

A pluralidade não nos condena ao conflito permanente. O que nos condena é a incapacidade de sustentar essa pluralidade sem transformar toda diferença em guerra ontológica. O mundo comum nunca foi um estado natural de harmonia. Ele sempre foi uma construção precária, mantida contra a fragmentação constante da experiência humana. Exigir que ele exista sem esforço, sem frustração e sem renúncia é negar a própria condição trágica da existência social.

Eliminar o certo e o errado não elimina o conflito. Elimina apenas a linguagem que permite mediá-lo. Quando tudo é igualmente válido, nada é verdadeiramente compartilhável. E quando nada é compartilhável, cada indivíduo se vê condenado à própria bolha existencial, incapaz de reconhecer o outro sem sentir-se ameaçado.

O comum não é um destino humano. É uma conquista frágil, sempre inacabada, sempre sob disputa. E talvez a verdadeira maturidade de uma sociedade não esteja em abolir seus limites, mas em reconhecer que eles existem, que são falhos, e que precisam ser constantemente revisitados — sem jamais serem negados por completo.

Comentários

Postagens mais visitadas deste blog

Limites entre a espiritualidade e a manipulação

 Algumas experiências são tão intensas que desafiam qualquer explicação simples. Entre espiritualidade e saúde mental existe um campo cinzento, quase indistinguível, onde as perguntas não encontram respostas definitivas. O que separa uma manifestação espiritual genuína de um surto psicótico? Quem garante que uma mensagem canalizada por um médium não é, na verdade, uma expressão inconsciente de seus próprios traumas? E mais: como identificar quando o cuidado espiritual se transforma em manipulação emocional? Passei por isso, e sei que muitos passam. A manipulação pode ser explícita ou sutil, consciente ou não, mas o que importa, no final, é o impacto que ela causa: sofrimento. Há algo particularmente perigoso quando esse jogo ocorre em contextos espirituais, porque a promessa de transcendência, cura ou evolução pode cegar as vítimas, tornando-as ainda mais vulneráveis. É um terreno fértil para líderes espirituais, sacerdotes, oraculistas e terapeutas holísticos que — mesmo sem más ...

Entre Estruturas e Escolhas

A estrutura em que vivemos é baseada no poder — simbólico, econômico, sexual, espiritual — que sempre foi concentrado, por séculos, nas mãos dos homens. E essa estrutura, chamada patriarcado , não se mantém apenas por força bruta. Ela se sustenta por uma engrenagem delicada: a naturalização da desigualdade , a romantização do sofrimento, e a repetição quase inconsciente de papéis impostos. A questão aqui não é sobre vilões e vítimas, bons ou maus. O que está em jogo é perceber como todos nós fomos ensinados a existir dentro de um sistema desigual , onde a masculinidade foi moldada como sinônimo de dominação, e a feminilidade, muitas vezes, como sinônimo de sacrifício. Mas o mundo está mudando. As vozes femininas vêm se levantando com força. Há uma ruptura em curso. E como toda revolução, essa também traz reações. O surgimento de grupos como os redpills ou incels é reflexo direto desse abalo na estrutura. Homens que perderam seus antigos privilégios — ou que nunca conseguiram ocupá-lo...

A Torre: Crise da Comunicação

Na narrativa bíblica da Torre de Babel, os seres humanos falavam uma única língua e, unidos, decidiram construir uma torre que chegasse aos céus. O mito diz que Deus, temendo essa aproximação, confundiu suas línguas e os dispersou pela Terra. Essa história aparece também, de formas distintas, em mitologias africanas, hindus e aborígenes, o que revela algo arquetípico: sempre que a humanidade se une e se fortalece por meio do entendimento, algo — ou alguém — age para fragmentar, para separar, para impedir a construção coletiva. Joseph Campbell dizia que os mitos são metáforas da experiência humana. A torre, então, é também símbolo da possibilidade de comunhão e da ameaça que isso representa para quem detém o poder. A linguagem é uma das ferramentas mais potentes que temos para construir sentido e, por consequência, poder. Ao longo da história, quem controla a linguagem controla as narrativas. Na Idade Média, por exemplo, a Bíblia era lida apenas pelo clero; o povo não tinha acesso diret...