Na narrativa bíblica da Torre de Babel, os seres humanos falavam uma única língua e, unidos, decidiram construir uma torre que chegasse aos céus. O mito diz que Deus, temendo essa aproximação, confundiu suas línguas e os dispersou pela Terra. Essa história aparece também, de formas distintas, em mitologias africanas, hindus e aborígenes, o que revela algo arquetípico: sempre que a humanidade se une e se fortalece por meio do entendimento, algo — ou alguém — age para fragmentar, para separar, para impedir a construção coletiva. Joseph Campbell dizia que os mitos são metáforas da experiência humana. A torre, então, é também símbolo da possibilidade de comunhão e da ameaça que isso representa para quem detém o poder.
A linguagem é uma das ferramentas mais potentes que temos para construir sentido e, por consequência, poder. Ao longo da história, quem controla a linguagem controla as narrativas. Na Idade Média, por exemplo, a Bíblia era lida apenas pelo clero; o povo não tinha acesso direto ao texto sagrado e, por isso, não podia interpretá-lo. Isso garantia a manutenção de uma ordem baseada na obediência. Hoje, não nos é mais negado o acesso à palavra — ao contrário, estamos mergulhados nela. Recebemos informações o tempo todo, de todos os lados. Mas essa abundância também é uma forma de controle. A desinformação, a avalanche de dados contraditórios, o excesso de ruído tornam o discernimento mais difícil. Ralph Keyes, ao tratar da era da pós-verdade, afirma que vivemos um tempo em que a aparência de verdade importa mais do que a verdade em si. E essa inversão mina nossa capacidade de agir de forma crítica.
Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo, oferece uma visão precisa desse novo tipo de controle: não mais pela repressão violenta, mas pelo excesso de prazer e distração. A alienação vem não pela dor, mas pelo conforto. As pessoas são condicionadas a amar sua servidão, e o pensamento crítico se torna obsoleto, desnecessário. A crítica de Huxley não é à ciência ou à razão — ao contrário do que uma leitura apressada pode sugerir — mas à forma como essas ferramentas podem ser corrompidas e esvaziadas por um sistema que se alimenta da superficialidade. Hoje, a cultura do meme e das respostas automáticas parece ter reduzido a complexidade da comunicação humana a gatilhos de engajamento. Reagimos antes de compreender. Compartilhamos antes de refletir.
As redes sociais, que em tese poderiam ser pontes, tornaram-se muros. Elas criam bolhas de confirmação, onde só ouvimos o que já concordamos. Perde-se o valor da praça pública — esse lugar simbólico onde ideias distintas podiam coexistir e se confrontar. Cada grupo vive sua versão dos fatos, e a verdade deixa de ser um bem comum. A fragmentação que o mito de Babel representava como punição hoje se repete como escolha — ou manipulação.
Mesmo nas relações íntimas, a comunicação se esgarça. O gesto de enviar um meme no lugar de uma pergunta sincera, ou de usar frases prontas como se fossem afeto verdadeiro, revela uma crise no encontro real. O diálogo exige escuta, contexto, disposição para o risco de ser tocado — e de se transformar. Como disse Paulo Freire, é no encontro com o outro, com o diferente, que a escuta verdadeira acontece. Mas sem corpo presente, sem a vibração da voz ou o brilho dos olhos, projetamos no outro o que tememos ou desejamos. A intenção se perde, o silêncio cresce.
Diante disso, é urgente refletir sobre a responsabilidade na comunicação. Antigamente, para falar algo difícil, era preciso encarar o outro: no olho a olho ou na ligação telefônica, a consequência era imediata. Hoje, no WhatsApp, temos o poder de digitar, enviar e apagar. E muitas vezes, apagamos não por respeito, mas para apagar também a culpa, o rastro, a responsabilidade. A comunicação se torna descartável, mas o impacto dela permanece. Se alguém leu, sentiu, foi afetado, a palavra existiu. Apagá-la depois não desfaz o que foi dito.
Essa facilidade tecnológica, quando usada para evitar o reconhecimento do erro, não é só covardia — é fuga ética. Quem informa, compartilha, opina, precisa se perguntar: isso é verdade? Isso faz bem ou causa dano? E se causar dano, tenho a coragem de assumir o que disse? A comunicação é sempre um ato político. E, sobretudo, um ato ético.
Talvez a Torre de Babel nunca tenha sido destruída. Talvez ela esteja sendo reconstruída, tijolo por tijolo, cada vez que conseguimos nos ouvir apesar das diferenças. Cada vez que decidimos traduzir, em vez de impor. Quando entendemos que comunicar é mais do que falar — é aproximar. Quem compreende uma linguagem diferente tem o poder de ser ponte. De propor, e não de calar. E nesse gesto, reencontramos a possibilidade do comum, do afeto, da construção.
Reconstruir a torre, afinal, não é desafiador aos deuses — é necessário aos humanos.
Referências completas:
A Bíblia Sagrada, Gênesis 11:1-9
Campbell, Joseph. O Poder do Mito. Palas Athena, 1990.
D'Ancona, Matthew. Pós-Verdade: a nova guerra contra os fatos em tempos de fake news. Ed. Vestígio, 2018.
Eliade, Mircea. O Mito do Eterno Retorno. Vozes, 1974.
Freire, Paulo. Pedagogia do Oprimido. Paz e Terra, 1970.
Huxley, Aldous. Admirável Mundo Novo. 1932.
Keyes, Ralph. The Post-Truth Era. St. Martin's Press, 2004.
Mbiti, John S. Religiões e Filosofias Africanas. Paulus, 1999.
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