A estrutura em que vivemos é baseada no poder — simbólico, econômico, sexual, espiritual — que sempre foi concentrado, por séculos, nas mãos dos homens. E essa estrutura, chamada patriarcado, não se mantém apenas por força bruta. Ela se sustenta por uma engrenagem delicada: a naturalização da desigualdade, a romantização do sofrimento, e a repetição quase inconsciente de papéis impostos.
A questão aqui não é sobre vilões e vítimas, bons ou maus. O que está em jogo é perceber como todos nós fomos ensinados a existir dentro de um sistema desigual, onde a masculinidade foi moldada como sinônimo de dominação, e a feminilidade, muitas vezes, como sinônimo de sacrifício.
Mas o mundo está mudando. As vozes femininas vêm se levantando com força. Há uma ruptura em curso. E como toda revolução, essa também traz reações. O surgimento de grupos como os redpills ou incels é reflexo direto desse abalo na estrutura. Homens que perderam seus antigos privilégios — ou que nunca conseguiram ocupá-los de fato — reagem com raiva, ressentimento, e em muitos casos, violência simbólica ou física.
Essa é a hora de fazermos perguntas mais profundas, que vão além de hashtags ou frases de efeito:
Como desmontar essa estrutura sem repetir suas lógicas? Como transformar o poder sem apenas trocar de protagonistas? E como ensinar o outro a não ferir, sem precisar carregar o peso de ser eternamente a pedagoga do opressor?
A Satisfação Masculina como Cimento do Patriarcado
Um ponto que não podemos ignorar: o patriarcado funciona porque satisfaz o homem. Mesmo que seja uma satisfação superficial, baseada em prazer imediato, controle emocional ou validação de outros homens. Enquanto houver uma mulher disponível para acolher, suportar ou tolerar esse homem, mesmo que em silêncio, ele não sente urgência em mudar.
É aqui que o sistema se alimenta de forma perversa. Muitos homens não enxergam problema no que vivem, porque ainda são atendidos. Não sentem a dor do outro como real. Não perdem seus espaços, seus corpos, suas liberdades. Estão confortáveis. E o conforto é inimigo da transformação.
O que fazer diante disso?
A Lógica Narcisista do Sistema
Um caminho possível de reflexão é traçar um paralelo com o transtorno narcisista. Pessoas com esse perfil costumam destruir emocionalmente os outros sem consciência real do que estão fazendo. Agem como se suas atitudes fossem naturais ou corretas. E quando são confrontadas, reagem com negação, raiva ou manipulação.
Só procuram ajuda quando seu "suprimento" acaba. Quando são abandonadas, rejeitadas, ou confrontadas com a solidão. Não mudam porque se tornam conscientes — mudam, se mudam, porque perdem o controle.
O patriarcado funciona de forma parecida. Enquanto as relações forem mantidas, mesmo que doentias, o sistema se perpetua. A mudança começa quando há perda: da admiração, da parceria, da confiança, do afeto, do desejo.
Mas não basta se afastar. É preciso ensinar. E ensinar não é carregar nas costas.
Aqui entra um ponto delicado: muitas pessoas dizem que não cabe às mulheres ensinar os homens a não serem machistas. E há verdade nisso. Não é função das mulheres salvar ninguém. Não é justo esperar que quem sofre com a opressão ainda precise educar o opressor.
Mas também é verdade que ninguém muda o que não compreende. O machismo não nasce com os homens — ele é aprendido. Desde pequenos, os meninos são ensinados a não chorar, a competir, a sexualizar, a dominar. Quando viram adultos, não sabem se relacionar com afeto, empatia ou vulnerabilidade — e acham que isso é normal.
Então, para que haja mudança, é preciso sim que haja educação, espelho, convite à escuta. Isso não significa que toda mulher tenha que assumir esse papel. Mas significa que a transformação só se sustenta com diálogo, não com abandono. Rejeitar homens machistas é necessário, mas só é transformador se isso vier acompanhado de um processo de responsabilização e consciência. Sem isso, o ciclo apenas se repete em outra mulher, outra relação, outra dor.
E as mulheres? Também foram ensinadas.
Importante dizer: as mulheres também foram moldadas pelo patriarcado. Também foram ensinadas a amar o impossível, a tolerar o insuportável, a romantizar a violência, a competir entre si.
E mais: na tentativa de se proteger ou se empoderar, muitas vezes podem acabar reproduzindo comportamentos de dominação que antes eram apenas masculinos. Isso não é culpa. Mas é consequência. A libertação individual precisa vir acompanhada de lucidez: repetir o comportamento opressor, só que agora com outra identidade, não é revolução. É ciclo.
A responsabilidade dos homens: sair do automático
Homens que se propõem a sair da lógica patriarcal precisam entender que isso não é um caminho de prestígio, mas de desconstrução profunda. É abrir mão de privilégios, de controle, de validação fácil. É colocar-se em vulnerabilidade, ouvir críticas, encarar erros — e ainda assim continuar.
Muitos desses homens, justamente por se abrirem, acabam se tornando os mais machucados por mulheres que ainda operam na lógica da troca e da autodefesa. Isso é doloroso. Mas também é parte do processo. Não basta querer ser diferente — é preciso sustentar essa diferença mesmo quando o mundo insiste no velho padrão.
O que muda o jogo: comunidade, afeto e consistência
A mudança só é real quando é sustentada em comunidade. Mulheres que se apoiam, que se fortalecem, que criam redes de autocuidado e proteção. Homens que se escutam, que criam grupos de diálogo, que se responsabilizam entre si.
O amor próprio feminino precisa ser radical, sim. Precisa dizer "não" ao mínimo, ao pouco, ao tóxico. Mas a desconstrução masculina também precisa ser real: não é sobre virar o "homem bonzinho" esperando reconhecimento. É sobre abandonar o jogo inteiro.
E isso não se faz sozinho.
Em vez de trocar o dono da estrutura, precisamos implodir o prédio.
O patriarcado não precisa de novos protagonistas. Precisa deixar de existir. E isso começa por não aceitar mais sua linguagem, seus códigos, sua lógica de uso e descarte.
Ninguém precisa se apagar para que o outro brilhe. Mas também não se constrói justiça mantendo o palco aceso só para quem já teve o microfone o tempo todo.
A revolução que importa não é de ódio — é de lucidez.
Não é contra os homens — é contra um modelo de ser homem que empobrece todo mundo.
E só acontece quando alguém diz: eu não aceito mais viver assim. E sustenta isso no dia a dia.
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