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Entre o Eu e o Mundo: Felicidade, Responsabilidade e Acolhimento

Você se deparou com algum dos discursos que exaltam a autonomia individual como se ela fosse uma solução para todas as dores humanas? Frases como “a felicidade só depende de você” ou “ninguém pode te ferir se você não permitir” proliferam em livros de autoajuda, palestras motivacionais e até mesmo em terapias superficiais. No entanto, essa visão, quando tomada como verdade absoluta, corre o risco de transformar-se em uma forma de alienação e narcisismo. Ela nos leva a ignorar que a vida não é uma experiência isolada, mas um tecido coletivo, marcado por relações e estruturas sociais que nos moldam e nos atravessam.

Se cada pessoa passasse a viver apenas “no seu próprio mundo interno”, o que aconteceria com as dores compartilhadas, como o feminicídio, o racismo, o abuso infantil, a pobreza? Essas não são dores individuais, mas feridas coletivas. Quando falamos de violências estruturais, o silêncio e a indiferença são cumplicidade. Ignorar um morador de rua ou tratá-lo como invisível não é apenas uma escolha pessoal, é um ato que reforça uma lógica de exclusão e desumanização.

Essa é uma das principais críticas ao individualismo moderno: ao privilegiar apenas a esfera interna, corremos o risco de anestesiar a empatia e nos tornarmos cúmplices de um mundo cada vez mais frio e fragmentado. Como afirma bell hooks, “o amor é um ato de vontade – tanto uma intenção quanto uma ação.” Para ela, o amor verdadeiro exige responsabilidade e compromisso com o bem-estar coletivo, e não apenas com a satisfação individual.


A Falácia da Felicidade Individualista

A ideia de que “a felicidade só depende de você” sugere que o mundo externo não importa, que basta “mudar sua mentalidade” para que a dor desapareça. Mas, se aplicada de forma cega, essa filosofia se torna cruel, pois culpabiliza as vítimas e absolve os agressores.

Quando pensamos em uma criança vítima de abuso, seria aceitável dizer que “ela sofre porque permitiu”? É evidente que não. Esse exemplo extremo expõe a falácia de reduzir todas as dores a meros estados internos. Há dores que são fruto de injustiças reais, perpetradas por outras pessoas e sustentadas por sistemas inteiros. A cura psicológica da vítima não isenta o agressor de responsabilidade. A dimensão interna do sofrimento não elimina a necessidade de justiça, nem o dever ético de prevenir que essas violências aconteçam novamente.

Como lembra Hannah Arendt, “a maior parte do mal no mundo é feita por pessoas que nunca decidem ser boas ou más.” Arendt cunhou o termo “banalidade do mal” para explicar como a indiferença e o conformismo podem gerar atrocidades. Não se trata apenas dos grandes crimes históricos, mas dos pequenos atos cotidianos de descaso, omissão ou crueldade que desumanizam o outro e normalizam a injustiça.


O Sentido Está no Encontro

Ao contrário do que pregam certas correntes individualistas, a vida não encontra seu pleno sentido na solidão. Martin Buber, filósofo do diálogo, nos lembra que “toda vida real é encontro”. Ele descreve dois modos fundamentais de relação:

O “Eu-Isso”, no qual tratamos o outro como objeto, reduzindo-o a uma função.

E o “Eu-Tu”, no qual reconhecemos o outro como um ser vivo, único, com quem podemos estabelecer uma relação autêntica.

A felicidade verdadeira não é encontrada ao nos fechar em nós mesmos, mas ao participar dessa rede viva de encontros. Viktor Frankl, sobrevivente do Holocausto e criador da logoterapia, vai além ao afirmar que “o homem é capaz de viver e até de morrer por seus ideais e valores.” Para Frankl, o sentido da vida é algo que transcende o eu. Não se trata apenas de buscar prazer ou evitar sofrimento, mas de encontrar um propósito — muitas vezes em algo maior que nós mesmos — mesmo diante da dor.

Frankl escreve:

“A dor, quando encontra um significado, deixa de ser apenas sofrimento e se transforma em sacrifício. O homem é capaz de suportar qualquer como, desde que exista um porquê.”
(Em busca de sentido, 1946)

Esse “porquê” dificilmente é encontrado em uma vida focada apenas no próprio umbigo. Ele nasce na relação com o outro, com a comunidade e com a construção de algo que tenha valor além do imediato.


Cuidar de Si para Cuidar do Outro

É claro que o cuidado de si é fundamental. Mas não existe um estado de “inteireza” a ser alcançado antes de podermos cuidar do outro. Estar inteiro é um mito; a vida é um movimento constante de altos e baixos, e é justamente nessa imperfeição que se constrói a possibilidade de oferecer equilíbrio, paciência e afeto. O que posso — e devo — fazer é estar consciente das minhas dores para que elas não transbordem de forma destrutiva sobre os outros. A busca por inteireza é o próprio caminho, e não uma meta final.

Tento aprender, dia após dia, a reconhecer minha dor sem precisar mascará-la, mas também sem deixar que o peso dela recaia sobre quem não deve carregá-lo. Não é algo que eu tenha conquistado plenamente, é uma busca contínua — um exercício diário de atenção e cuidado, onde muitas vezes erro, mas tento reparar e seguir aprendendo.

Essa postura se aproxima do que Paulo Freire chama de “conscientização”. Em Pedagogia do Oprimido, ele escreve:

“Ninguém educa ninguém, ninguém se educa a si mesmo, os homens se educam entre si, mediatizados pelo mundo.”
(Pedagogia do Oprimido, 1968)

Freire nos lembra que a transformação não é individual, mas coletiva. Assim como nos educamos no encontro, também nos curamos e nos tornamos mais humanos na forma como lidamos com nossas fragilidades e cuidamos dos outros, mesmo sem estarmos “prontos.”


Justiça, Culpa e Acolhimento

Um dos pontos que reflito é a questão da justiça. Tenho a sensação de que nossa sociedade tende a “exterminar” quem erra, como se a punição fosse suficiente para resolver o problema. A pessoa paga uma pena, mas raramente se fala em reintegração real. Mesmo depois de “pagar sua dívida”, ela continua carregando um estigma que a exclui da vida social.

Vejo que esse modelo não transforma — apenas reforça ciclos de ódio, exclusão e violência. Como  Bell Hooks afirma:

“Amar é um ato de vontade: tanto uma intenção quanto uma ação. O amor verdadeiro é uma prática, não um sentimento passivo. Amar exige responsabilidade, respeito e coragem para transformar a si mesmo e ao outro.”
(All About Love, 2000)

Para mim, acolher quem errou não significa inocentar ou ignorar o dano causado, mas acreditar na capacidade de reconstrução. Uma sociedade que não acredita na reintegração perpetua o medo, o julgamento e a indiferença. É claro que existem casos extremos — pessoas que oferecem risco real à vida coletiva — e que exigem medidas de isolamento. Mas mesmo nesses casos, penso que é necessário um olhar científico, ético e empírico, para não confundir justiça com vingança.


A Síntese Ética: O Caminho do Meio

A consciência que busco não está no isolamento individualista, nem na sobrecarga de carregar todo o sofrimento do mundo. Sinto que ela surge nesse equilíbrio frágil entre três pilares:

  • Cuidar de mim mesmo, reconhecendo que algum grau de equilíbrio interno é necessário para não agir de forma reativa e destrutiva.

  • Assumir a responsabilidade pelas minhas ações e pelos impactos que gero, mesmo nos gestos mais simples.

  • Acreditar na transformação e no acolhimento, tentando enxergar o outro como alguém capaz de evoluir, e não como um ser “descartável.”

Segundo Viktor Frankl:

“O homem é aquele que inventou a câmara de gás de Auschwitz, mas também é aquele que entrou nela de cabeça erguida, rezando.”

Dentro de cada um de nós existe tanto a capacidade para o mal quanto para o bem, e a diferença está nas escolhas que fazemos e na forma como nos relacionamos com o outro.

No fundo, penso cada vez mais que “o mundo que eu vivo é meu, mas nunca só meu.” A vida é uma construção conjunta, e talvez o sentido só apareça quando encontro um equilíbrio entre cuidar de mim sem me fechar e cuidar do outro sem me anular.

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