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A Redenção como Ciclo Consciente

Dia desses ouvi um padre exorcista dizendo que suas experiências lidando com essas situações, levaram-no a compreender que a pessoa que estaria possuída, teria de alguma forma realizado a comunhão sem antes ter se confessado. Essa declaração me fez entrar em uma reflexão mais profunda sobre o que de fato acontece em uma confissão. 

Na minha percepção, no caso da religiosidade usar isso com ferramenta, existe uma intencionalidade de controle através do medo e da culpa. Mas refletindo mais profundamente nessa questão, outras culturas também valorizavam de alguma forma, o ato desse reconhecimento do erro como um caminho o que me levou a pensar quais dispositivos psicológicos, sociais, espirituais entram em ação quando de fato assumimos nosso erro?

Fui criado em uma cultura que, com frequência, encara o erro como um desvio a ser punido, esquecido ou escondido. Desde a escola, aprendi que errar é fracassar, mas percebi, já adulto, enquanto professor de capoeira, que talvez o erro seja, na verdade, a semente mais honesta do aprendizado — não apenas individual, mas coletivo. E se o erro não for um fim em si, mas o início de um ciclo profundo de transformação?

A partir de muitas reflexões, experiências e discussões, começa a se formar uma hipótese: o erro inaugura um processo que atravessa a consciência, o conhecimento e a capacidade de autodomínio. Um ciclo que poderia ser entendido como uma espiral de evolução — onde o indivíduo, ou mesmo a sociedade, ao reconhecer sua falha, pode crescer, amadurecer e se tornar mais consciente.

Tudo começa, inevitavelmente, com a ruptura. O erro aparece como sintoma de que algo se deslocou da harmonia. No plano pessoal, ele pode se manifestar como uma ação impensada, um padrão inconsciente, ou mesmo como algo que foi feito com intenção, mas que depois se mostra desalinhado com nossos valores mais profundos. No plano coletivo, o erro assume formas como injustiças normalizadas, violências estruturais ou decisões históricas que geram sofrimento. O erro, por mais incômodo que seja, é sempre uma mensagem. E é ao escutar essa mensagem que damos o primeiro passo rumo à consciência.

O despertar da consciência pode vir por introspecção, mas muitas vezes nasce do confronto — com o outro, com as consequências, com a dor que retorna como espelho. Esse reconhecimento do dano não é um lamento passivo, mas um movimento ativo de responsabilidade. Arrependimento, nesse contexto, é diferente de culpa, é uma tomada de posição: "Fui eu. Agora vejo.". Ao ver, abre-se a possibilidade de nomear o que aconteceu. Essa nomeação — essa “confissão”, se quisermos usar um termo que transcende a religião — tem um poder imenso. Ela nos humaniza, desarma o ego e nos permite reentrar em contato com a realidade objetiva.

Mas ver o erro não basta. É preciso compreendê-lo.

"- Por que agi assim? O que me moveu? Quais crenças, feridas ou medos estavam guiando meu comportamento?"

Neste ponto, o conhecimento entra como ferramenta de libertação. Não se trata de julgar o passado com dureza, mas de investigar com profundidade. É o território da psicologia, da filosofia ética, da espiritualidade lúcida.

O verdadeiro aprendizado se dá quando compreendemos o mecanismo por trás da repetição.

Quando fazemos isso, nasce em nós uma nova forma de controle — não repressiva, mas autônoma. Um controle que nos torna aptos a não repetir os mesmos erros porque já os conhecemos por dentro.

A esse processo poderíamos chamar redenção. Mas aqui, redenção não significa apenas ser perdoado por um outro ou por uma entidade superior. Significa tornar-se alguém capaz de agir de forma diferente porque assimilou a experiência de forma consciente.

A redenção é o ponto em que o erro já não nos define, mas nos transforma.

Ainda assim, algo fundamental precisa acontecer: o retorno às trocar inter-relacionais. Ninguém se redime em isolamento. A cicatrização final se dá no campo social, quando a pessoa volta a pertencer — a si, a um grupo, a um vínculo. O erro precisa encontrar lugar no passado, e não no destino. Mas, para isso, é preciso que a sociedade esteja disposta a acolher. E esse talvez seja um dos maiores desafios contemporâneos: uma cultura punitivista que exclui, cancela, marginaliza e não oferece caminhos reais de reintegração. Redenção sem acolhimento vira prisão perpétua de identidade. Quem erra, muitas vezes, carrega o rótulo para sempre — não importa o quanto tenha mudado. Precisamos romper com isso.

Tudo o que acontece no indivíduo se espelha também no coletivo. Sociedades também erram, também despertam e, com esforço, também aprendem. Quando uma estrutura social é questionada — por exemplo, o racismo sistêmico, a violência contra as mulheres, ou a destruição ambiental —, vemos esse mesmo ciclo em movimento. Primeiro, há negação. Depois, consciência. A seguir, vem o esforço de compreender causas históricas, culturais, institucionais. E, por fim, a tentativa de estabelecer controles mais justos: leis, reformas, mudanças culturais.

Mas, tal como acontece com pessoas, sociedades só mudam de verdade quando há um reconhecimento real das vítimas, um pedido de perdão legítimo e uma vontade política de reintegração. É por isso que comissões da verdade, revisões históricas e mudanças nos símbolos públicos são tão importantes. Elas marcam, simbolicamente, o fim de um erro e o início de uma nova narrativa coletiva.

Mesmo assim, essa jornada não é simples. Um dos grandes impasses atuais é que os indivíduos parecem estar se transformando mais rápido do que as instituições conseguem acompanhar. Há um abismo entre a velocidade das consciências pessoais e o ritmo lento das estruturas sociais. Isso cria uma tensão: como viver com autenticidade em sistemas que ainda não refletem a nova ética que estamos construindo?

Essa pergunta é difícil — mas talvez a resposta esteja em não negar o conflito. Aceitar que ele existe, e que faz parte do processo de maturação coletiva. Assim como no indivíduo, a fratura é a entrada da luz. Tanto o erro pessoal quanto o social podem ser portais para uma evolução mais consciente. A verdadeira liberdade — aquela que transcende impulsos e automatismos — nasce quando somos capazes de ver o que antes era invisível, e fazer diferente.

Transformar o erro em sabedoria é, talvez, o projeto mais desafiador e necessário do nosso tempo. E é justamente por isso que ele é também o mais profundamente humano.

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