Muitas vezes ouvimos que esquecer o passado é um ato de libertação.
Em círculos espirituais, filosóficos, terapêuticos, é comum que nos digam que precisamos desapegar da dor, compreender que as pessoas que nos machucaram agiram a partir de suas próprias limitações e, portanto, devemos apenas soltar, virar a página, agradecer pelo aprendizado.
Mas eu questiono profundamente esse discurso.
Esquecer, por não ser um ato conscientemente induzido, pode ser apenas um autoengano, abrindo espaço para que uma dor mal resolvida continue agindo, no fundo, como um veneno silencioso.
Se expandirmos esse raciocínio para o coletivo, vemos que também existem forças interessadas em que esqueçamos. Quando Rui Barbosa mandou queimar os registros da escravidão no Brasil, ele não estava apenas apagando papéis; estava cortando o fio que ligava gerações ao reconhecimento de quem sofreu, quem lucrou e quem deveria ter sido responsabilizado.
A comunidade negra diaspórica carrega as cicatrizes de séculos de escravidão, violência e apagamento e a busca por ancestralidade tem sido um movimento vital de reconexão e fortalecimento. Encontrar suas raízes, reconhecer práticas e tradições passadas de geração em geração, dar nome e rosto ao que foi negado por tanto tempo: tudo isso não é uma volta nostálgica ao passado, mas um gesto de poder no presente. Esse movimento fortalece identidades individuais e coletivas, influencia políticas públicas, alimenta o senso de pertencimento e restitui valor à memória.
O mesmo acontece em muitas famílias de imigrantes — judeus, italianos, portugueses, espanhóis, japoneses — que nutrem orgulho ao contarem de onde vieram, ao partilharem histórias dos antepassados, ou até ao buscarem parentescos famosos em suas árvores genealógicas. Ter consciência da origem ajuda a responder a pergunta fundamental: quem sou eu?
Quando falamos em esquecer, estamos muitas vezes beneficiando aqueles que historicamente detiveram poder e que não têm interesse em ser confrontados com a própria violência. É um movimento que abre terreno para revisões perigosas, para pós-verdades, para a perpetuação da desigualdade sob novas roupagens.
Mas esse mesmo padrão opera também no íntimo, no micro.
Eu, como filho adotivo, só tive essa confirmação aos 39 anos.
Não foi por falta de curiosidade, pois me foi negada essa informação por três vezes pela minha própria mãe, como eu poderia duvidar? Mas algo ainda persistia me incomodando como que dissesse: "tem algo errado aí".
A confirmação não chegou por acaso — foi porque um amigo teve coragem de quebrar um pacto de silêncio. Ele soube, no dia de seu aniversário, quanto aquela sensação de incompletude e dúvida me doía, e decidiu depois de dois dias, ser honesto comigo.
A verdade veio como um raio, mas também como um alívio.
Ao expor aos meus pais naquela mesma semana o que eu agora já sabia, gostaria de entender as causas e os fatos, meu pai confirmou, mas minha mão ainda insistia em negar, depois disse que um espírito, no centro espírita que frequentavam, havia dito que não era para me contar.
Então ficou assim: um pacto coletivo de silêncio, em que mesmo familiares próximos disseram depois que “haviam esquecido dessa história”.
Quando eu finalmente expus isso, o discurso social que mais ouvi foi: “O que importa é que seus pais te amam”. Mais uma vez, o convite sutil ao silêncio. Um “xiu”, um “não olhe para isso, agradeça”. Mas eu não queria desmerecer o amor dos meus pais. Eu queria apenas olhar no espelho e entender quem eu era por inteiro.
O que percebo é que a sociedade tem mais medo do grito da dor do que da dor em si. Vemos isso nos casos em que agressões ficam invisíveis dentro de famílias, abafadas por segredos, ou quando, no extremo oposto, a dor explode em violência coletiva, como no caso recente de uma menina sequestrada e abusada, cujo agressor foi linchado até a morte pela população. Silêncio ou fúria: extremos que evitam lidar com a complexidade do trauma, da justiça, da reparação real.
Pesquisas tem mostrado que esquecer não é uma solução verdadeira. O corpo guarda as marcas: memórias traumáticas continuam operando nos circuitos cerebrais, nos padrões emocionais, mesmo quando não falamos delas. O campo da epigenética vem mostrando que as experiências vividas por nossos ancestrais — traumas, estresses, adaptações — não desaparecem no vazio, mas podem moldar a expressão genética das gerações seguintes. Não se trata de destino místico, mas de informação biológica real, transmitida por mecanismos ainda em estudo.
Além disso, muitas tradições espirituais e religiosas já intuíram há séculos o que a ciência começa a desvendar: que há algo em nós que carrega os fios da história familiar, que as missões, os vícios, os impulsos e os talentos de quem veio antes podem ressurgir em nós.
Honrar nossos ancestrais não é apenas montar um altar ou lembrar nomes — é ter consciência do que passou, do que ainda reverbera no presente, e do que precisa ser reconhecido para que possamos escolher outro caminho. É um ato de integração. É dizer: “Eu sei que vocês vieram antes, eu sei o que carregaram, eu reconheço o que isso trouxe até mim.”
É dar um lugar à dor — não para ficar preso nela, mas para não ter que repeti-la às cegas.
E, de novo, voltamos ao ponto central deste texto: olhar o passado. Olhar para trás não é ficar preso — é o único jeito de caminhar com consciência para frente. Como já diziam os povos Akan, de Gana, na filosofia Sankofa: “Nunca é tarde para voltar e apanhar aquilo que ficou para trás.”
Não estou dizendo que essa filosofia é uma prova científica ou que as crenças ancestrais são evidências objetivas. Estou dizendo que há uma sabedoria ali, uma hipótese poderosa sobre a importância de integrar passado e presente. Ignorar as raízes é caminhar sem fundamento.
O que nos liberta é reconhecer, aprender, ressignificar.
E, a partir daí, escolher outro caminho.
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