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A Relativização do Bem e do Mal

Quando tudo parece relativo, surge a dúvida: como viver em grupo, tomar decisões e aplicar justiça sem uma base comum?

Mesmo que valores possam variar entre culturas, existem princípios quase universais — como o exercício da empatia: “o que eu não gostaria que fizessem comigo, também não devo fazer com o outro”. Esse simples raciocínio já é um ponto de partida para a convivência.

Quando alguém comete um ato que fere essas bases de respeito, o grupo social reage, normalmente por meio da punição. Essa punição deveria ter como foco não apenas o isolamento, mas a reorganização do indivíduo para que ele possa retornar ao convívio social com mais consciência e responsabilidade. Para isso, uma premissa é fundamental: é preciso acreditar que as pessoas podem mudar.

Mas a realidade é complexa. Nem toda mudança é simples ou rápida. E há casos que exigem atenção ainda mais cuidadosa, como indivíduos diagnosticados com transtornos psiquiátricos de risco social, como psicopatia ou transtorno de personalidade narcisista. Esses quadros não podem ser ignorados ou romantizados — eles requerem tratamento específico, pesquisas científicas sérias e estratégias clínicas realistas que considerem tanto a segurança do coletivo quanto a dignidade da pessoa.

Reconhecer que essas condições existem não é o mesmo que justificar o mal que alguém comete. Fazer o mal ainda é fazer o mal — e deve haver consequências. A punição continua sendo necessária para preservar a ordem e os direitos de todos. Mas isso não significa que devamos abandonar a ideia de transformação.

Cada pessoa terá suas justificativas, seus traumas, suas histórias — e isso não apaga os danos que causaram. Mas punir sem nenhuma perspectiva de reabilitação é como fechar uma porta e jogar a chave fora. É declarar que o outro não tem mais lugar entre nós — e, pior, que jamais terá.

Essa visão nos distancia de um princípio essencial para uma convivência mais justa: a crença de que a mudança é possível, mas só acontece quando há desejo genuíno por parte do indivíduo. E é aí que entra o papel do grupo — seja ele familiar, comunitário, institucional ou espiritual. O grupo não pode mudar pelo outro, mas pode oferecer condições, direcionamento, tratamento e principalmente tempo para que essa mudança ocorra.

No entanto, há um padrão comportamental cada vez mais adotado — consciente ou inconscientemente — que sabota essa transformação: o apagamento do passado. A ideia de que esquecer é o melhor caminho para seguir em frente parece tentadora, mas na verdade mina a restauração real. Sem reconhecer o que foi feito, sem revisitar os danos causados, não se forma uma régua moral, ética ou de caráter para medir o progresso do indivíduo. O passado precisa ser compreendido, não apagado. É ele que ensina, alerta e orienta.

Socialmente, muitas pessoas fogem da responsabilidade por seus atos e se refugiam em grupos que reforçam essa fuga, mesmo que nem sempre saibam dos detalhes. Há um incentivo à negação, à distração, à superficialidade. E quando a vítima se cala — seja por medo, cansaço ou pressão social — o ciclo se repete. A responsabilidade pelo dano precisa partir de quem causou, e isso inclui danos emocionais, psicológicos e materiais. Mas, para isso acontecer, quem sofreu o dano também precisa poder falar, ser ouvido, respeitado e levado a sério.

Infelizmente, outro comportamento social recorrente é o silenciamento das partes envolvidas em nome do entretenimento vazio ou do escândalo superficial. O sensacionalismo banaliza os conflitos e transforma dor em espetáculo. Ao invés de aprofundar o debate e buscar compreensão, reforça estigmas e inviabiliza mudanças reais.

Exclusão e descrença só alimentam o ciclo da dor, da marginalização e da repetição da violência. Acreditar na mudança do outro não é ingenuidade, é um ato de coragem e compromisso com a construção de um futuro mais consciente.

E esse compromisso não é apenas idealista — ele é real e já acontece em diversas partes do mundo. Um exemplo conhecido é o de comunidades africanas, como os Xhosa, onde, ao invés de isolar quem cometeu um erro, os membros da aldeia reúnem-se em círculo, colocando o indivíduo no centro e relembrando todas as boas ações que ele já fez. Acredita-se que isso o ajuda a se reconectar com sua essência e responsabilidade social.

Práticas semelhantes inspiraram os chamados Círculos Restaurativos, hoje usados em diversas comunidades tradicionais e até no sistema judiciário moderno. No Brasil, por exemplo:

O Poder Judiciário do Tocantins desenvolve o Projeto Círculos Restaurativos com os Povos Indígenas Krahô, promovendo a resolução pacífica de conflitos e respeitando tradições culturais (fonte: CNJ).

Em Belo Horizonte, o Projeto Ciranda de Justiça Restaurativa atua com adolescentes em conflito com a lei, utilizando rodas de escuta e responsabilização para promover reintegração (fonte: MPMG).

A própria ONU, em seu Manual sobre Programas de Justiça Restaurativa, recomenda o uso de práticas circulares para lidar com crimes e conflitos, com base na escuta ativa e na reparação (fonte: UNODC).


Esses exemplos mostram que é possível pensar a justiça de forma mais humana e eficaz, sem abrir mão da responsabilidade, mas ampliando as possibilidades de cura — tanto para quem causou o dano quanto para quem sofreu.

Se queremos viver em um lugar melhor, precisamos aprender a julgar com justiça, punir com responsabilidade e — principalmente — esperar e apoiar verdadeiramente a transformação daqueles que mais precisam.

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