Em um mundo onde tudo parece relativizado, o respeito se tornou um valor raro. É comum distorcer conceitos para justificar escolhas pessoais, e esse fenômeno não poupa nem mesmo as tradições espirituais. Hoje, as religiões de matriz africana estão em evidência, mas o que deveria ser uma celebração de suas raízes muitas vezes se torna uma moda passageira. Nesse processo, muitos fundamentos são deixados de lado — e, junto com eles, o respeito pela essência dessas práticas.
Quando falamos de espiritualidade, estamos lidando com algo sagrado, que envolve não apenas rituais e crenças, mas a ancestralidade de um povo. Ao realizar um culto sem o devido conhecimento, corremos o risco de desrespeitar não apenas a prática, mas também os ancestrais que zelam por ela. Uma jornada espiritual legítima exige aprendizado, tempo e, acima de tudo, respeito. É um compromisso com aqueles que vieram antes de nós e dedicaram suas vidas a preservar esses saberes.
Para exemplificar, vamos falar sobre a Quimbanda. Atualmente, existem diversos cultos no Brasil que se autodenominam Quimbanda, mas de onde realmente vem essa prática?
O termo Kimbanda tem origem nas tradições Bantu, especialmente no quimbundo falado em Angola, onde o Kimbanda era um curandeiro, um sacerdote que usava conhecimentos ancestrais para cuidar de sua comunidade. Os primeiros registros dos "kimbandas" datam de antes do século XV, quando os portugueses chegaram à África. Já os primeiros grimórios goéticos, que mencionam demônios e entidades europeias, surgiram nos séculos XVI e XVII.
A Quimbanda, em sua essência africana, cultua espíritos ancestrais, honrando aqueles que viveram, transmitiram e preservaram práticas espirituais de geração em geração. Portanto, não há conexão histórica ou cultural entre o Kimbanda africano e entidades judaico-cristãs ou europeias, como Lúcifer, Satanás, Lilith, Belzebu, Baphomet e Astaroth — figuras que, ironicamente, são mais reverenciadas na Quimbanda moderna brasileira do que os próprios espíritos africanos.
Essa fusão de práticas distintas, que insere entidades estrangeiras em um culto de origem africana, é um reflexo do sincretismo religioso forçado durante a colonização e escravização. Entretanto, perpetuar essa mistura nos dias de hoje sem um entendimento profundo dos fundamentos é mais um apagamento histórico do que um fortalecimento cultural.
Alguns justificam esse sincretismo afirmando que ele protegeu as religiões afro-brasileiras do preconceito e perseguição. Mas "adaptar" a Quimbanda para incluir entidades europeias é, na verdade, um enfraquecimento de seus fundamentos e uma distorção de suas raízes. Se continuarmos nesse caminho, arriscamos perder completamente a essência dessa tradição.
A resistência de quem mantém viva a verdadeira Quimbanda é um ato de coragem. São essas pessoas que honram os ancestrais e garantem que a tradição não seja apagada pela moda ou pela superficialidade.
Em resumo, se você deseja cultuar uma divindade como Lúcifer, Lilith ou Baphomet, faça-o, mas não apague a história de uma cultura que já foi silenciada por séculos. Dê outro nome ao seu culto. Respeitar a origem das coisas é um ato de reverência e um compromisso com a verdade.
Os ancestrais nos observam e nos apoiam, mas apenas aqueles que perpetuam sua história e honram suas memórias recebem seu verdadeiro axé. Que não sejamos aqueles que apagam o que deve ser preservado.
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