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13 de maio...

A capoeira me deu mais vontade de conhecer a história do país e entender como ela era contada. O dia 13 de maio, por exemplo, sempre foi narrado como um momento de felicidade, como se fosse um ato de bondade de uma princesa para com um povo escravizado. Tudo balela — algo que hoje é evidente. Com o tempo, percebi como a história é contada por quem ocupa o topo da pirâmide social. Por mais que no terreiro — berço do samba, da capoeira, do candomblé — outras histórias fossem vividas e compartilhadas a partir de outro ponto de vista, essas vozes não tiveram o direito de ecoar amplamente. Foram silenciadas ou ignoradas.

Curiosamente, hoje também se celebra o Dia dos Pretos Velhos — entidades da Umbanda que teriam vivido nesse tempo de escravidão e que, com suas vozes brandas e gestos simples, transmitem saberes profundos. Ao observar os dados do primeiro censo do Brasil, realizado em 1872, ainda no Império, temos uma dimensão cruel da realidade: a população total era de cerca de 10 milhões de pessoas, sendo aproximadamente 1,5 milhão de escravizados. Entre esses, apenas cerca de 10% tinham mais de 50 anos. Os que passavam dos 60 representavam meros 3% a 5% da população escravizada. Ou seja, apenas de três a cinco em cada cem pessoas negras escravizadas chegavam aos 60 anos. A maioria morria antes, vítima de maus-tratos, doenças, trabalho exaustivo e abandono.

Ainda assim, no imaginário popular — fortemente influenciado por obras como Casa Grande & Senzala ou Sítio do Pica-Pau Amarelo — criou-se a imagem romantizada do Preto Velho: aquele ancião sábio e resignado, sentado no toco, cachimbo na mão, sempre sorrindo e sereno. Mas será mesmo que todo esse sofrimento virou apenas mansidão? Ou estamos evitando escutar outras versões desses mesmos espíritos?

Uma constante na nossa sociedade parece ser a falta de estímulo ao pensamento crítico. Afinal, questionar "verdades" pode incomodar. Mas se temos essa capacidade, por que não a usamos para construir mudanças reais? A abolição, por exemplo, foi assinada não por compaixão, mas por pressão: internamente, os movimentos sociais já causavam impacto; externamente, o Brasil passava vergonha diante da opinião pública internacional. Nenhuma estrutura de poder se move por boa vontade — apenas quando há desconforto ou risco de perder o privilégio.

Voltemos aos Pretos e Pretas Velhas. Na Quimbanda, em suas diversas vertentes brasileiras, essas entidades surgem como figuras de resistência e combate à submissão. A dor vivida por séculos não some simplesmente; ela marca, grita, cobra. Nessa tradição, os Pretos Velhos podem carregar raiva, rancor, ressentimentos. São sentimentos legítimos diante do que viveram. Já na Umbanda, essas mesmas entidades aparecem com outra roupagem: falam de paz, de perdão, de gratidão. A quem interessaria que figuras tão violentamente vitimadas deixassem de expressar sua dor?

Há quem diga que, por evolução moral, essas entidades não trariam mais sentimentos “negativos”. Mas outras correntes entendem que silenciar a raiva é apagar parte da memória. Por isso, na Quimbanda, essa raiva aparece como uma ferramenta de ensinamento — algo necessário para equilibrar forças. E nesse ponto, nos perguntamos: o que essas figuras espirituais nos dizem sobre a forma como tratamos nossos velhos hoje?

O Brasil descarta seus idosos. Se na época da escravidão alguém com 35 ou 40 anos já era considerado velho e próximo da morte, hoje esse pensamento se perpetua de forma menos explícita, mas igualmente cruel. Ainda medimos o valor de alguém por sua utilidade — por sua capacidade produtiva, por sua juventude, por sua força de trabalho. Mudou tanto assim?

Tenho refletido sobre isso ao observar as dinâmicas dos terreiros, cultos e práticas dos povos originários das Américas. Existe ali um espírito de aldeia: coletivo, respeitoso, intergeracional. Mas será que vivemos, de fato, numa cultura de aldeia? O capitalismo nos empurra para o individualismo, para a competição, para a meritocracia. De que adianta vivermos experiências transformadoras por algumas horas ou dias — como num retiro espiritual — se, logo depois, somos tragados novamente pela lógica violenta do "cada um por si"? Essa mudança interna que buscamos precisa se sustentar para gerar alguma transformação externa.

A data de hoje serve para refletirmos sobre essas entidades que representam sabedoria — porque são mais velhas, porque o tempo lhes conferiu valor. Valorizá-las é valorizar também os anciãos que estão vivos ao nosso redor. Mas por que tanta gente cultua um Preto Velho espiritual, mas não consegue respeitar um idoso real, na rua, na família ou na comunidade?

Retomo aqui minha vivência com a capoeira, lembrando de dois grandes nomes: Vicente Ferreira Pastinha e Manoel dos Reis Machado. Mestres respeitados, guardiões de uma arte brasileira, que morreram esquecidos por muitos que aprenderam com eles. Enquanto eram úteis, despertavam interesse. Quando adoeceram ou precisaram de cuidados, foram descartados. É claro que há exceções, pessoas que estiveram com eles até o fim. Mas se são exceções… isso diz muito.

Neste 13 de maio, que possamos refletir sobre como tratamos e valorizamos nossos ancestrais que ainda estão vivos. Que nossas crenças sejam materializadas em atitudes concretas. E aproveito para prestar minha homenagem a outro grande nome da capoeira, Mestre Ananias Ferreira, acolhido até seus últimos dias — em 21 de julho de 2016 — por mestres e capoeiristas de São Paulo, como Rodrigo Minhoca, Cacá Zungu, entre tantos outros.

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